Ditadura da Certidão Negativa

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Helenilson Cunha Pontes
Doutor e livre-docente pela USP

                                                               É impressionante a capacidade e o empenho do Poder Público em impor obstáculos de natureza burocrática e fiscal ao setor produtivo. Certamente, a sigla CND - Certidão Negativa de Débito - já tirou o sono de muitos empreendedores nacionais, tendo em vista a circunstância de que se tornou o mais eficiente instrumento que o Estado Brasileiro já criou para pressionar o contribuinte brasileiro a pagar tributos que muitas vezes são indevidos.

Como não consegue se organizar para cobrar adequadamente os seus tributos, dentro das regras do devido processo legal, onde ao contribuinte é garantido o direito de defesa, administrativa e judicial, o Poder Público simplesmente nega a emissão de CND ao contribuinte sob a simples afirmação, muitas vezes sequer escrita, de que há divergência entre as declarações do contribuinte e as informações que constam dos computadores oficiais. Ponto.

Não é exagero afirmar que sem CND nenhuma empresa brasileira consegue operar regularmente. A disposição constitucional segundo a qual nenhuma empresa em débito com o sistema da seguridade social poderá contratar com o Poder Público, nem dele receber benefícios e incentivos fiscais ou creditícios, foi levada ao extremo e, hoje, se exige CND para tudo, desde uma simples alteração contratual levada a registro na Junta Comercial até o registro de uma promoção de vendas no Ministério da Justiça, passando pela necessidade de remessa de lucros ao exterior por empresas que têm capital estrangeiro registrado no Banco Central do Brasil, isso sem falar em operações mais simples como a venda de um bem imóvel.

Não se opera regularmente no Brasil sem uma CND atualizada, o que obriga o empresário a peregrinar três a quatro vezes por ano nos balcões das repartições fiscais, claramente despreparadas para atender o cidadão-contribuinte com eficiência e celeridade. As filas que se acumulam diariamente nos balcões das repartições fiscais, sobretudo federais, é a manifestação clara do desrespeito ao direito do contribuinte a um serviço público eficiente e rápido.

Chegou-se ao ponto de ser instituída nas repartições fiscais a prática da senha para atendimento, a qual é seguida da advertência: 'só atendemos 50 ou 60 pessoas por dia', o que obriga o contribuinte a madrugar na frente da repartição para conseguir a sua senha de atendimento, se não quiser ter que comprá-la de alguns mais espertos que utilizam a ineficiência do Poder Público e recebem a senha para depois negociá-la com um contribuinte desesperado por atendimento.

No âmbito federal, não bastasse a tradicional incapacidade de se atender a massa de contribuintes que diariamente procuram a Receita Federal, o Governo Federal atabalhoadamente pretendeu unificar o seu sistema de arrecadação tributária, o que gerou uma tremenda confusão administrativa entre a Receita Federal e o INSS, agravada por uma greve dos auditores fiscais federais. Resultado: em razão da incompatibilidade de sistemas informáticos, renasceram nos computadores oficiais débitos já liquidados pelo contribuinte, gerando a negativa de emissão de CND e colocando o contribuinte na situação de ter que comprovar que há mais de cinco anos já recolheu um tributo que agora lhe é novamente exigido pelos computadores.

O desrespeito chegou à institucionalização da absurda prática do 'lançamento eletrônico secreto', isto é, aquele que consubstancia o débito apontado pelo computador, em razão de supostas divergências de informações, mas do qual o contribuinte não é notificado para se defender, e com tal defesa suspender a sua exigibilidade e garantir a emissão de CND. O contribuinte apenas toma conhecimento daquele lançamento quando se dirige à repartição para requerer a sua CND, momento em que é informado da 'pendência' e da impossibilidade de apresentar defesa administrativa com o efeito de suspender a exigibilidade porque, no entender oficial, não cabe impugnação contra este tipo de exigência.

Diante deste quadro, cabe ao contribuinte entulhar o Poder Judiciário com mandados de segurança visando à obtenção da CND. A maioria dos juízes de primeira instância, infelizmente, não conseguem compreender a gravidade da situação, talvez porque trancados em seus gabinetes não conhecem o significado real de um dia sem CND para um contribuinte que precisa empreender neste país ou, ainda, estejam convencidos da lição de Direito Administrativo que receberam na Faculdade, reprodução de velha teoria francesa do século dezoito, segundo a qual existe a presunção de validade dos atos administrativos e se a autoridade fiscal está exigindo algo, embora nem ela, nem o contribuinte, nem o próprio juiz, consigam entender o porquê da exigência, a mesma é presumida como legal. No atual quadro da relação Fisco-contribuinte no Brasil, em tema de CND, aquela teoria pode ser traduzida pela inaceitável idéia de que 'todo contribuinte é um delinqüente fiscal razão pela qual não se pode acreditar na sua palavra'.

Exige-se do contribuinte judicialmente a chamada prova diabólica, isto é, a prova de que não praticou qualquer ilicitude fiscal. Os computadores oficiais apontam débitos originados de supostas 'divergências', as autoridades fiscais não conseguem explicá-lo de forma consistente e célere, nega-se ao contribuinte o direito de defesa administrativa quanto àqueles débitos, bem como a emissão de CND, e, para concluir a via crucis do contribuinte, o juiz ainda lhe exige a prova de que não deve aqueles débitos, os quais sequer consegue compreender.

Diante desta ditadura da CND, causa-me estranheza o silêncio obsequioso das entidades empresariais que não se articulam para combate institucionalmente esta prática nefasta à cidadania fiscal e do próprio Poder Judiciário que, mesmo diante de um expressivo e recente precedente do Supremo Tribunal Federal, amplamente divulgado, considerando inconstitucional a prática das sanções políticas, como a negativa de CND, ainda é complacente com esta conduta oficial.

06.02.2007 

Fonte: Jornal "O Liberal" - edição 06.02.2007

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