CONSERVAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL |
JOEL
DE LUNA BOZOLO
Delegado
de Polícia no Estado de São Paulo
SUMÁRIO: /. Conceitos de inquérito policial - 2. Inquérito policial
-Enquanto interesse da Justiça Criminal — 3. Inquérito policial —
Enquanto defesa de direitos fundamentais — 4. Conclusão — 5.
Bibliografia. 1.
CONCEITOS DE INQUÉRITO
POLICIAL O que seria
o inquérito policial? A única definição legal que se tem notícia é a do
Dec. 4.824, de 22.11.1871, art. 11, § 3.° (parte final), c/c art. 42, que o
define como "verificação da existência da infração penal o
descobrimento de todas as suas circunstâncias e da respectiva
autoria". Todavia, na doutrina encontramos a definição do saudoso Prof.
Augusto Mondin: "É o registro legal, formal e cronologicamente escrito,
elaborado por autoridade legitimamente constituída, mediante o qual esta
autentica as suas investigações e diligências na apuração das infrações
penais, das suas circunstâncias e dos seus autores". Podemos também
conceituar inquérito policial, como o Prof. Octacílio Oliveira Andrade:
"a formal documentação da atividade persecutória penal do Estado, em
sua primeira fase. Entendido persecução penal como a apuração do delito ou
contravenção, e de sua autoria", ou, como ensina Júlio Fabbrini
Mirabete: "Inquérito policial é todo procedimento policial destinado a
reunir os elementos necessários à apuração da prática de uma infração
penal e de sua autoria. Trata-se de uma instrução provisória, preparatória,
informativa, em que se colhem elementos por vezes difíceis de se obter na
instrução judiciária...". Inquérito
policial é, pois, um procedimento administrativo, investigatório, elaborado
pela polícia judiciária, sob a presidência do Delegado de Polícia, e tem
como finalidade colher todas as provas de existência da infração penal, das
suas circunstâncias e de sua autoria. É o que se depreende do art. 144, §
4.°, da Constituição da República, bem como do art. 4.° do CPP, específicos
quanto ao tema. O destinatário do procedimento é o titular da ação penal
(pública ou privada), fornecendo-lhes elementos para formação da sua opinio
delicti para a apresentação da denúncia ou da queixa. Cabem aqui,
porquanto próprias, as observações do Prof. Arinos Tapajós Coelho Pereira:
"sendo o inquérito policial instrumento extrajudicial, não decisório,
de competência da polícia judiciária, sendo uma verificação ictu oculi
da infração penal, que servirá de base à queixa ou denúncia, qualquer
defeito ou irregularidade nele apontado, contanto que não seja visceral ou
substancial, poderá ser sanado ou corrigido em juízo, não afetando,
portanto, a propositura da ação penal... O inquérito é peça policial que
sempre persiste ou permanece, ainda mesmo que venha ocorrer nulidade do
processo penal respectivo". Carlos
Alberto Marchi de Queiroz do Grupo de Estudos instituído por Marco Antonio
Desgualdo, Delegado Geral da Polícia de São Paulo, defende a tese de que o
inquérito policial é imprescindível, dando-nos, como exemplo, os casos de
prisão em flagrante. E apresenta-nos o seguinte conceito: "poderíamos
estabelecer, sob o ponto de vista técnico-policial, que o inquérito policial
é o instrumento pelo qual o Delegado de Polícia materializa a investigação
criminal, compila informações a respeito da infração penal, de suas
circunstâncias e resguarda provas futuras, que serão utilizadas em juízo
contra o autor do delito". Ainda na
mesma obra apresentada pelo grupo de estudos, composto de eminentes operadores
do direito, do qual é coordenador o Prof. Carlos Alberto Marchi de Queiroz,
menciona a definição de autoridade policial do Prof. Hélio Tornaghi
(constante na sua obra Instituições de processo penal), qual seja:
"Autoridade Policial é aquela que, com fundamento em lei, é parte
integrante da estrutura do Estado e Órgão do Poder Público, instituído
especialmente para apurar as infrações penais, agindo por iniciativa própria,
mercê de ordens e normas expedidas, segundo sua discrição". 2.INQUÉRITO POLICIAL -
ENQUANTO INTERESSE DA JUSTIÇA CRIMINAL No dia
08.09.1941, Francisco Campos, então Ministro da Justiça e Negócios
Interiores, em sua Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, explicou
a razão pela qual conservou o inquérito policial, argumentando que "é
ele uma garantia contra apressados e errôneos juízos, formados quando ainda
persiste a trepidação moral causada pelo crime, nas suas circunstâncias
objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspeta, a autoridade que
dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo
crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a
sugestões tendenciosas". O inquérito
policial não é processo, não estando sujeito aos rigores das nulidades.
Assim, os errôneos juízos porventura surgidos podem ser corrigidos, sem
prejuízo da ação penal a ser proposta. Objetiva-se a busca da verdade real.
Este princípio (da verdade real) tem o escopo de estabelecer que o jus
puniendi do Estado seja exercido somente contra quem praticou a infração,
nos exatos limites de sua culpa. Portanto, do inquérito policial está excluída
a verdade formal, que pode ser criada até por omissões das partes. A verdade
formal (existente no processo civil) afirma, como verdadeiras, simples ficções. "Denota-se
da lúcida Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941, da
lavra de Francisco Campos, ainda vigente, a coerente opção pela manutenção
do inquérito policial como instrumento de persecução penal preliminar, por
melhor atender aos interesses da justiça criminal e adequar-se às
peculiaridades administrativas e geográficas do país". E a
sensata opinião de Raymundo Cortizo Sobrinho (Boletim IBCCrim 101/2,
abril 2001). Constata-se, pois, que o tema embora atual, não é novo, eis que
há aproximadamente sessenta anos é objeto de polêmica. Uma pequena corrente
quer sua extinção. O inquérito
policial tem por finalidade servir de base para a instauração da ação
penal pública, ou para a ação penal privada. A primeira a ser promovida
pelo órgão do Ministério Público, e a segunda, pelo ofendido através de
advogado. Para que o Juiz de Direito receba a denúncia ou a queixa, e submeta
o réu ou querelado aos transtornos que a ação penal lhe causa, deve haver
justa causa, ou seja, é preciso que se tenha fatos demonstrando a existência
do crime e da autoria. É necessário o fumus boni juris que sustente a
denúncia ou a queixa. Inexistindo, a ação penal estará fadada ao
insucesso, ou, até mesmo, ao seu trancamento. A bem da
verdade, cumpre ressaltar que tanto o órgão do Ministério Público, para
apresentar a denúncia, quanto o advogado, para apresentar a queixa-crime,
podem dispensar o inquérito policial, valendo-se de outros elementos. Não é,
pois, imprescindível para a propositura da ação penal pública ou privada.
Também é de se consignar que existem infrações que não deixam vestígios
materiais - delicta facti transeuntis -, como a calúnia, injúria,
desacato, ameaça etc. Há, porém, infrações que deixam vestígios - delicta
facti permanentis -, como os crimes de homicídio, estupro, falsificação
de documentos etc. Determina o art. 158 do CPP que "quando a infração
deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou
indireto, não podendo supri-los a confissão do acusado". Afirma o Prof.
Mirabete que, "tratando-se de exame de corpo de delito direto, deve ser
realizado logo que o fato torna-se conhecido da Autoridade Policial. Mais
perfeita será a perícia quanto mais próxima do delito for realizada. Além
disso, sempre há o risco de desaparecerem os vestígios, obrigando a realização
do corpo de delito indireto. Por isso, o Código preconiza que seja ele
efetuado em qualquer dia e a qualquer hora (art. 161)". Forçoso
concluir que o órgão acusador pertencente ao Ministério Público, com
garantias constitucionais, pode obter a prova que entender necessária, para a
formação de sua opinio delicti, tendo para si todo o aparelhamento
estatal. Todavia, o titular da ação privada, representado em juízo pelo
advogado, não dispõe do poder de requisição nem de garantias
constitucionais. Depende, para a colheita de provas, da Autoridade Policial,
que, por sua vez, se vale do inquérito policial. Ora, para algumas infrações
penais é perfeitamente dispensável o inquérito, assim como, consoante a Lei
9.099/95, dispensável é também a ação penal. Entretanto,
para se propor ação penal, é necessário se tenha a "fumaça do bom
direito". Só assim poderá o Juiz receber a denúncia ou a queixa-crime,
submetendo o réu ou querelado aos dissabores da ação penal, aos
aborrecimentos que a lide penal provoca ao acusado, mormente naqueles casos em
que é absolvido, por ser inocente. Por tais razões a ação penal deve estar
fundamentada em provas colhidas pêlos órgãos que a Constituição Federal
de 1988 designa, mormente no art. 144, § 4.", que determina sejam as
infrações penais apuradas pelas "polícias civis, dirigidas por
delegados de polícia de carreira". Para o
sucesso da ação penal (no futuro), devem ser colhidas as provas materiais
anteriormente ao seu início. Provar é produzir um estado de certeza.
Consoante essa singela definição, verifica-se que a prova pode servir para
afirmar ou negar a existência de um fato. Portanto, quando produzida no inquérito
policial deve servir de base para a ação penal, ou como fundamento para sua
rejeição. O procedimento investigatório policial serve de alicerce para a ação
penal. Contém ajusta causa para sua instauração ou rejeição. E, mais, as
provas foram colhidas pelo órgão designado constitucionalmente para tal
desiderato. 3.INQUÉRITO POLICIAL -
ENQUANTO DEFESA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS A Constituição
Federal declara no art. 5.°, X, serem invioláveis a intimidade, a honra e a
imagem das pessoas. No inc. LV afirma que aos litigantes, em processo
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa. Outra regra é a constante do inc. LXVIII - "conceder-se-à
habeas corpus'" sempre que alguém sofrer violência em sua
liberdade de locomoção, por ilegalidade. Já no inc. LXXVII, informa serem
gratuitas as ações de habeas corpus. No inc. LXXIV contém a regra de
que o Estado prestará assistência jurídica aos que comprovarem insuficiência
de recursos". Antes de
submeter-se uma pessoa ao constrangimento de sentar no "banco dos réus",
há de apurar um mínimo de indícios que autorizem o início da ação penal.
Eis o objetivo do inquérito policial, qual seja colher provas da existência
do fato, da autoria e de suas circunstâncias, para que possa o dominus
litis, que é o órgão do Ministério Público na ação penal pública,
ou o querelante na ação penal privada, formar sua convicção e denunciar ou
apresentar a queixa-crime, ao Estado-Juiz. Estaremos então, através do inquérito
policial, tornando invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas. As apurações
realizadas no inquérito o são de forma inquisitiva. Sempre foi assim, mas, a
partir da promulgação da CF/88, essa afirmação está sendo questionada.
Aos litigantes, mesmo no administrativo, são assegurados, diz a Carta Magna,
o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Ora,
a polícia judiciária está praticamente "formando a culpa" do
indiciado, e a ele há de se aplicar o contraditório, e com muito mais razão,
a ampla defesa. Ad argumentandum: se não há indiciado, não há que
se falar em contraditório ou ampla defesa, mas, havendo indiciado, inafastável
o imperativo constitucional. O remédio
heróico do habeas corpus pode se fazer presente durante as investigações
formais realizadas pela polícia judiciária. Se houver coação na liberdade
de locomoção, estaremos diante da possibilidade da impetração do mandamus,
este fará cessar a coação, a ilegalidade e o abuso de poder. A garantia
constitucional pode inclusive "trancar" o inquérito policial,
impedindo, assim, o prosseguimento das investigações contra o indiciado, e,
por conseqüência, impedindo a subseqüente ação penal. Nessa hipótese,
estaria garantindo-se o direito de forma antecipada. Convém relembrar que são
gratuitas as ações de habeas corpus. No caso do
indiciado comprovar insuficiência de recursos, determina a Lei Maior que o
Estado prestará assistência jurídica e gratuita. Mais uma vez, o inquérito
policial deve possibilitar ao indiciado a defesa de seus direitos por
profissional habilitado a fazê-la. Pode durante a tramitação do
procedimento administrativo policial trazer indícios de sua inocência, ou
indicar sua medida de culpabilidade, ou até mesmo provar a seu favor circunstância
atenuante, ou, ainda e finalmente, indicar provas de causa de exclusão de
ilicitude. Novamente o inquérito agindo na defesa de direitos fundamentais
previstos na Constituição. 4. CONCLUSÃO Procuramos
demonstrar que o inquérito policial é uma garantia para a correia aplicação
da Lei Penal, pois não possibilita o recebimento de uma ação penal temerária,
que só servirá para desgastar o Poder Judiciário, ocupando-lhe tempo e
recursos, que melhor seriam aplicados numa denúncia ou queixa-crime com base
firme, fundamentada em um procedimento investigatório policial com alicerce
assentado em provas robustas, colhidas sob o crivo do contraditório e da
ampla defesa. Daí incontestes, e que não precisariam ser repetidas em juízo,
como a maioria das provas técnicas não precisa ser. Um pequeno
grupo de doutrinadores propõe a extinção do inquérito policial. Argumentam
que deveria ser criado, em substituição, um juízo de instrução. Haveria
economia processual, rapidez na aplicação da lei e as provas seriam
produzidas uma vez, perante o juízo. A Autoridade Policial limitar-se-ia a
investigar criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e arrolar e
indicar testemunhas. Para a realidade do país seria impraticável, além de
que o Juiz faria investigações, o que não se coaduna com a tradição jurídica
brasileira. O réu teria direitos sacrificados. Apresentam, pois, argumentos
frágeis. Tarcísio
Marques, na publicação do artigo intitulado "Inquérito policial",
na Revista ADPESP, apresenta argumentos fortes para a manutenção do
instituto, citando renomados mestres. Dá início a matéria dizendo que
"a pretendida supressão do inquérito policial ou mesmo a restrição de
seu âmbito mais uma vez volta à baila. Tal qual um vulcão dormente, mais
ainda vivo, que de quando e sem prévio aviso apresenta sinais e manifestações
de nova erupção. Assim acontece com o tema em pauta... Ainda, tal como o
vulcão que não diz o porquê de sua 'braveza' e simplesmente quer jogar sua
lava fervente contra todos". Transcreve
ainda nesse artigo interessante observação de Sérgio Marcos de Moraes
Pitombo: "essa idéia acha-se desgastada nos países de origem. Assim, o
Juizado de Instrução desapareceu do processo penal italiano e se encontra
muito enfraquecido na França, em razão da internacionalização dos
processos penais na Europa. O velho Juizado de Instrução, tão-só, se mantém
na Bélgica, país que não tem dedicado muito esforço à segurança pública.
Quem fala de Juizado de Instrução no Brasil, talvez não saiba que propõe
importar sucata". Constata-se que, até no Direito Comparado, o Juizado
de Instrução é ineficaz. O inquérito
policial demonstra ser garantia de direitos fundamentais do indivíduo, não
submetendo a pessoa humana, senão quando necessário, aos entraves causados
por uma ação penal. Garante direitos individuais sem prejudicar direitos
coletivos. Só levando pessoas aos tribunais, quando veementes indícios
demonstrarem o fato e a autoria. Nas hipóteses enumeradas (implicitamente)
está o princípio in dubio pro societate. Por isso, não há
necessidade do convencimento exigido para uma condenação, basta ao inquérito
policial um juízo fundado de suspeita. Permitam-nos essa comparação à
sentença de pronúncia. Hei por
consignar ainda, data venia, nessa exposição, que o inquérito
policial é dispensável para a propositura da ação penal. E que a Lei
9.099/95, ao definir as infrações penais de menor potencial ofensivo, criou
(para elas) o termo circunstanciado de ocorrência policial, ou seja,
substituiu o inquérito policial pelo termo circunstanciado, mantendo a presidência
de ambos com a Autoridade Policial. Poderíamos afirmar que o inquérito
policial está para o termo circunstanciado assim como o crime está para a
contravenção penal. E, para ambos, naquelas hipóteses de infrações
penais, foi extinta a ação penal. De todo o
exposto, afirmando estar filiados aos doutrinadores que pretendem não a extinção
do inquérito policial, mas seu aprimoramento, como meio de defesa dos
direitos individuais e coletivos. Instituir em seu âmbito o contraditório e
a ampla defesa. Dar ao indiciado assistência jurídica e gratuita. Fazer do
inquérito instrumento de busca da verdade real. Defender os interesses
sociais, sem abandonar os direitos individuais. Valer-se do inquérito
policial para apurar infrações penais complexas, deixando as infrações
penais de menor potencial ofensivo a serem investigadas como previsto na Lei
9.099/95. 5.BIBLIOGRAFIA CENEVIVA, Walter. Direito constitucional brasileiro. 2. ed. São
Paulo : Saraiva, 1991. CORTIZO SOBRINHO, Raymundo. "Reflexões sobre a permanência do inquérito
policial e a inviabilidade do juizado de instrução na legislação
processual penal". IBCCrim, ano 8, vol. 101, p. 2, abr. 2001. MARCHI DE QUEIROZ, Carlos Alberto e outros. Manual de polícia judiciária
- Delegacia geral de polícia, 2000. MARQUES, Tarcísio. "Inquérito policial". ADPESP (Associação
dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo), ano 21, n. 29, p.
63-67, jui. 2000. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal. 3. cd. São Paulo : Atlas,
1994. MONDIN, Augusto. Manual do inquérito policial. Sugestões Eiterárias, 1969. 25.11.2005 |
Fonte: Remetido por e-mail |
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