DNA  não  é  cartola  de  mágico

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Zeno Veloso
Jurista

 O Repertório de Jurisprudência IOB n° 23/2007 publicou na sessão denominada 'Jurisprudência Comentada' opinião que emiti sobre acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que julgou a recusa na realização do exame de DNA.

Nos tribunais brasileiros, até com base num precedente no próprio Supremo Tribunal Federal (STF), é pacífico o princípio de que ninguém pode ser constrangido, levado à força para fazer exame com vistas à verificação do DNA, ou seja, não é possível obrigar-se uma pessoa a fornecer sangue (ou outro material) para a realização do teste. Trata-se de um direito constitucional recusar-se ao dito exame, negar-se a colaborar na produção da prova. Tudo porque prevalece a regra da inviolabilidade do corpo humano.

Mas, em contrapartida, diante dos interesses daquele que se nega a realizar o teste, ergue-se a perigosa presunção de que realmente é o genitor da pessoa que ingressou com a ação de investigação de paternidade. Parece que essa presunção se inspirou no ditado popular: 'Quem não deve não teme'.

Em Minas Gerais, todavia, a questão que deu origem ao acórdão do Tribunal de Justiça e ao comentário que ao mesmo dirigi apresentava aspectos singulares que a distanciavam muito do que normalmente ocorrem. Em meu livro 'Direito Brasileiro da Filiação e da Paternidade', assim como em vários artigos e em aulas e conferências, tenho registrado que toda a cultura, construção doutrinária, a jurisprudência, enfim, toda a concepção sobre a prova nas ações de filiação, que tinha por base a circunstância de que a paternidade era um mistério impenetrável, sendo impossível obter-se a prova direta da mesma, passou, recentemente, por radical transformação, e um entendimento de muitos séculos teve de ser inteiramente revisto. Com o progresso científico e a invenção do teste de DNA, a paternidade pode ser determinada com absoluta certeza. Esse teste - com aquelas três palavrinhas mágicas - tornou obsoletos todos os métodos científicos até então empregados para estabelecer a filiação. Para fazer uma comparação, é como atravessar o Atlântico há 200 anos, como fez dom João VI, ou fazer a mesma viagem hoje, num avião a jato. Enfim, o teste de DNA, como se vê, tornou frágeis todos os meios até então empregados para estabelecer a filiação. A comparação genética por meio desse exame é tão esclarecedora e conclusiva quanto as impressões digitais que se obtêm na datiloscopia, daí afirmar-se que o DNA é uma impressão digital genética.

No caso concreto, ocorrido em Minas Gerais, uma mulher com mais de 40 anos ingressou com uma ação investigatória de paternidade alegando que o suposto pai mantivera relação sexual com sua mãe, que, ao tempo da concepção, vivia em pensão na zona do meretrício, sendo freqüentada por muitos fregueses, mantendo encontros íntimos com vários homens no mesmo dia.

O TJ Mineiro, dada as circunstâncias, achou que a recusa do réu a se submeter ao exame de DNA não deve levar à conclusão de que foi ele quem gerou a investigante. Além de se fundar em princípios constitucionais, a recusa é justificável pelos fatos constantes no processo e deve ser invocada a 'justiça do caso concreto'.

Parece-me despropositado que tenha um cidadão de se submeter a exame de DNA, no contexto de ação investigatória, pelo fato de, há mais de quatro décadas, ter ido a um bordel para dar satisfação às suas carências sexuais. Na ausência de qualquer indício, de qualquer prova produzida pela investigante, de que o réu praticou ato sexual, em caráter de exclusividade, à época da concepção, o exame médico-legal não pode ter tamanha força e poder, servindo de prova única, exuberante e inexorável do vínculo paterno-filial, sobretudo quando nenhuma relação afetiva jamais foi estabelecida entre as partes, e nunca mantiveram qualquer tipo de relacionamento, durante mais de 40 anos, e praticamente só se conheceram pessoalmente durante as audiências, nos corredores do Tribunal.

Em outro livro, 'Grandes temas da atualidade. DNA como meio de prova da filiação' (editora Forense, Rio de Janeiro, pág. 379), obra coordenada por meu amigo professor Eduardo de Oliveira Leite, alertei para os perigos do que chamei 'sacralização do DNA na investigação de paternidade', ponderando que esse exame tem sido realizado como prova única, como prova máxima, maravilhosa (em todos os sentidos do vocábulo) e essencial, aparecendo como panacéia para resolver todos os males, superar todas as questões e dificuldades. E concluí: 'O resultado do laboratório, entretanto, não pode ser confundido com cartola de mágico, de onde saltam todas as coisas e pulam todas as respostas. Não tem sentido e não há razão para deixar de acolher a prova genética do DNA, mas ela deve estar compreendida no conjunto probatório.'

20.01.2010 

Fonte: Publicado no jornal "O Liberal" - 05.01.2008

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