Jacyntho e o testamento de Luci

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Zeno Veloso  
Jurista

 

 Jacyntho Vasconcellos Moreira de Castro telefona para lembrar que é o “Dia Internacional do Notariado Latino”. O vocábulo “latino”, aqui, não se refere a este lado do continente americano, mas indica o notariado que pertence à tradição romano-germânica. O tabelião é um dos profissionais mais antigos do mundo, responsável pela escrituração e preservação dos documentos fundamentais da história da humanidade. A carta do escrivão Caminha ao rei de Portugal inaugura a literatura a respeito de nosso país. Na Alemanha, há uma aproximação moral e jurídica entre o notário e o magistrado.

Jacyntho Castro é um tabelião respeitadíssimo no Brasil. Em qualquer reunião, seminário, congresso de notários e registradores, quando aparece alguém do Pará, surge, logo, a pergunta: “O Jacyntho não vem?” E é uma pessoa que não envelhece. Fica zombando dos muitos anos que, felizmente, já viveu. Não alega cansaço, doença, falta de tempo. É inimigo da preguiça. Desde as primeiras horas da manhã, está na labuta. E começou menino; são mais de sessenta anos de trabalho ininterrupto, produtivo, sério, honesto. Jovial, bem-educado (o que muito deve à tabeliã Joana Diniz, sua mãe), amigo leal de seus amigos - que são muitos -, é uma grande figura. No “Dia Internacional do Notariado Latino”, lembro de ti, e te homenageio, Jacyntho Castro!

E aproveito a lembrança de Jacyntho para falar de um caso, muito interessante, que tem a ver com atos de última vontade. Meu amigo e mestre Euclides de Oliveira mandou-me de São Paulo recortes de jornais que falam da questão que está dividindo a família Bianchi, em Porto Alegre-RS. É que a advogada Luci Carmen Bianchi, morta aos 51 anos de idade, em novembro de 1995, deixou o seu espetacular apartamento de cobertura, de 504 metros quadrados, para três animais de estimação: os gatos Puppy e Branquinho e a cadela Laika.
Na sua disposição mortuária, manuscrita num papel de embrulhar pão, datada de 19 de agosto de 1994, Luci pediu que seu irmão, Altamiro, cuidasse dos animais, indicando, até, o nome do veterinário que vai tratar dos mesmos, e escreveu: “para isso, destino parte de meus bens para a manutenção e bem-estar dos bichinhos, a manutenção do apartamento e os gastos do Altamiro para cumprir esta disposição”.

Quem pensar que Luci devia estar louca, ou fora do siso ou razão, quando pensou nos bichinhos e esqueceu dos parentes, não deve imaginar a importância dos animais de estimação especialmente na vida de uma mulher adulta, sem filhos, que mora sozinha. Os parentes, talvez, só lembraram que ela existia para ir ao seu enterro - se é que foram! A velhice, muitas vezes, é um naufrágio. O abandono por que passam alguns idosos é terrível. O desconforto moral e a tristeza que suportam são imensos. Muitos deles passam o dia inteiro, a noite toda, solitários, sem nem tocar o telefone, vendo programas de televisão. Ao lado deles, carinhosos, solidários, fica algum bichinho. Um gato, um cachorro, são os únicos seres deste mundo dos quais essas pessoas recebem companhia, amor, solidariedade, as únicas criaturas que “conversam” com elas. Quem tem um animalzinho de estimação sabe, e muito bem sabe, do que estou falando.

Mas Luci deixou outros dois irmãos, e quatro sobrinhos, que acham que Altamiro, no fundo, quer ficar com o apartamento, e a questão está na Justiça. O STJ vai julgar um agravo de instrumento, apresentado por Altamiro, que pretende que a última vontade de sua irmã seja respeitada. 

Acho que o STJ não irá manter o desejo final de Luci. Faltou-lhe a orientação de um tabelião experiente, como o Jacyntho Castro. O escrito deixado num papel de embrulho, sem testemunhas, não atende às formalidades para a validade de um testamento particular, conforme dispõe o artigo 1.876, parágrafo 1º, do Código Civil. Deveriam ter comparecido ao ato, e assinado, três testemunhas, e a testadora teria de ler o testamento às mesmas. Nada disso foi feito! O testamento de Luci é nulo de pleno de direito, e lamento muito dizê-lo.

Mas seria possível deixar bens e animais? Abordei a matéria em meu livro “Testamentos” (Cejup, Belém, segunda edição, 1993, n. 843, página 417) e alertei que somente as pessoas têm capacidade para receber bens em testamento, estando excluídos os animais e coisas inanimadas. Mas nada impede que alguém deixe um bem ou uma quantia a uma pessoa, estabelecendo o encargo, para o beneficiário, de cuidar, proteger, alimentar, manter um animal de estimação. Mas deixar o bem, diretamente, para um animal ou para um ser inanimado (como, por exemplo, “nomeio herdeira universal minha mãezinha, Nossa Senhora de Nazaré”, caso que já relatei, aqui, num antigo artigo), não há possibilidade jurídica de fazer. Entretanto, são válidas e eficazes as cláusulas testamentárias seguintes: “deixo a casa da rua de Óbidos nº 1.549 para Gute, com o encargo de cuidar dos cãezinhos, Ramón e Lu”, ou, “lego meu apartamento para a Arquidiocese de Belém, com a obrigação de separar metade do que ele render para ajudar nas despesas do Círio de Nossa Senhora de Nazaré”.

E por falar na Senhora de Nazaré, na semana que antecede à majestosa procissão - a maior do mundo inteiro -, rogo que ela estenda a sua bênção a este generoso povo do Pará, que tanto ama e venera a mãe de Jesus.

 

12.11.2005

Fonte: Jornal "O Liberal" - Belém - Pará

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