Lei que regula a sucessão

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Zeno Veloso 
Jurista


Atendi a ligação e reconheci a voz amiga do professor Carlos Alberto Dabus Maluf, de São Paulo, e ele informou que acabara de ganhar na Justiça, como parecerista e advogado, uma importante questão, dando-me a honra de citar a opinião que emiti sobre o assunto, nos Comentários ao Código Civil (Editora Saraiva, volume XXI). O tema é novo, extremamente interessante, muito importante e, mudando os nomes das pessoas, vou contar o caso.

João e Denise casaram-se há muitos anos. São de tradicionais famílias paulistanas, conceituadas, quatrocentonas, muito ricas. O casamento foi celebrado sob o regime convencional da absoluta separação de bens, conforme pacto antenupcial que celebraram. Em 1985, Denise fez o seu testamento. Como não tinha descendentes, nem ascendentes, não possuindo, portanto, herdeiro necessário, deixou toda a sua imensa fortuna para um sobrinho, nomeando-o universal herdeiro. Como se observa, a testadora fez a sua disposição de última vontade de acordo com o Código Civil de 1916, que então estava em vigor. Denise morreu em julho de 2003, e o viúvo pediu a abertura de inventário, apresentando-se como herdeiro da esposa, tendo sido nomeado inventariante. O sobrinho, que tinha sido instituído único herdeiro no testamento, contestou a atitude do tio, alegou que era dono de todos os bens deixados pela tia, e se estabeleceu a controvérsia.

O problema é de direito intertemporal. O testamento da falecida foi celebrado durante a vigência de um Código, mas ela deixou este mundo terreno e foi aberta a sua sucessão quando já vigorava um outro Código Civil. Quanto à forma do testamento, deve ser observada a lei que vigorava na época de sua confecção, conforme o princípio “tempus regit actum”, de maneira que uma lei posterior, que exija outros requisitos para a facção do testamento, ainda que tenha começado a viger num tempo em que ainda era vivo o testador, não pode invalidar o testamento feito segundo as exigências formais do momento de sua elaboração. Porém, é a lei vigente na data do falecimento, quando se dá a abertura da sucessão, que regula a legitimação para suceder, a ordem da vocação hereditária, a eficácia jurídica das disposições testamentárias. Em suma: as regras formais do testamento são as do tempo em que ele foi feito; as normas substanciais da sucessão hereditária (regras de fundo, de conteúdo jurídico) são as da época em que faleceu a pessoa de cuja sucessão se trata.

O novo Código Civil, no artigo 1.787, afirma: “Regula a sucessão e a legitimação para suceder a lei vigente ao tempo da abertura daquela”. No artigo 2.041, prevê que as suas disposições relativas à ordem da vocação hereditária não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto no Código Civil anterior. Em sentido contrário, se a sucessão for aberta já sob a égide do novo Código – que começou a vigorar no dia 11 de janeiro de 2003 –, é este que irá regular a sucessão hereditária.

Na questão relatada pelo professor Maluf, Denise fez testamento numa época em que o Código que então vigorava só considerava herdeiros necessários os descendentes e os ascendentes. Denise não tinha tais parentes, e podia, portanto, dispor livremente de todos os seus bens, pois, embora fosse casada, seu marido não era herdeiro necessário, e o testamento da esposa tinha o poder de afastá-lo da sucessão (Código de 1916, artigo 1.725).

Entretanto, Denise morreu em julho de 2003, já estava em vigor um novo Código, e é este que regula a ordem da vocação hereditária. O novo Código considera herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens (artigo 1.845). Além de se ter tornado herdeiro necessário, quer dizer, reservatário, obrigatório, o cônjuge sobrevivente (viúvo ou viúva), que foi casado sob o regime convencional da separação de bens, concorre à sucessão do falecido com os descendentes deste – filhos, netos, bisnetos etc. (artigos 1.829, I e 1.832); independentemente do regime de bens, concorre com os ascendentes do defunto – pais, avós, bisavós etc. (artigos 1.829, II e 1.837). E ocupa sozinho a terceira classe na sucessão legítima, se não houver parentes em linha reta (artigo 1.829, III). Por exemplo, se o falecido não deixou descendentes nem ascendentes, o herdeiro é o cônjuge sobrevivente, mesmo que o casamento tivesse o regime da separação, inclusive a separação obrigatória. Ainda que sobrevivam parentes colaterais do defunto (irmãs, tios, sobrinhos, primos), o cônjuge tem preferência, é chamado antes destes. Tais parentes colaterais, até o quarto grau, somente são convocados à sucessão se o morto não deixou descendentes, ascendentes e cônjuge (artigo 1.839).

Ora, João, viúvo de Denise, a partir de 11 de janeiro de 2003, é herdeiro necessário da mesma. Não será mais excluído da sucessão pelo simples testamento de sua mulher. Esta pode, somente, dispor da metade da herança (parte disponível), nos termos do artigo 1.789, pois a outra metade dos bens da herança pertence de pleno direito ao herdeiro necessário, constituindo a legítima deste (artigo 1.846).

Sintetizando: o testamento de Denise está parcialmente prejudicado; tem de ser reduzido aos limites da parte disponível (artigo 1.967). O viúvo, então, é dono, como herdeiro necessário, da metade da herança (legítima) e o sobrinho é herdeiro (testamentário) da outra metade. Ainda mais: o viúvo, sem prejuízo da participação que lhe cabe na herança, tem o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar (artigo 1.831).

24..02..2005 

Fonte: Jornal "O Liberal" - edição de 12.02.2005

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