o   JUIZ   SENTENCEIA

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     Naquele tempo… Não foi há tanto tempo assim, como, inevitavelmente, se interpretaria essa locução temporal. Lembra ela as andanças de Jesus Cristo na terra. O Evangelho a usa com freqüência: “in illo tempore”. Falo de coisa de 30, 35 anos atrás, quando era costume se receberem convidados para almoçar ou jantar. Eu, por exemplo, durante os anos de faculdade, freqüentei a mesa abundante e generosa do casal Luiz Gonzaga e Gilda Lobato, no apartamento deles, na Rua Ferreira Viana, no Flamengo. A gente almoçava, ia a um cinema próximo e ainda voltava para o lanche da noite. Não atinávamos no quanto pesava no bolso dos anfitriões a presença habitual de dois, três, quatro autoconvidados. No início da advocacia, eu almoçava, nos domingos, na casa de Dona Sylvia Gomide, mãe de Luiz, então meu único sócio. O ponto alto da refeição eram as sobremesas, artesanalmente preparadas na noite do sábado pela dona da casa, uma das figuras mais impressionantes das que já me cruzaram a vida. Era uma espécie de sarau. Lya Correa Dutra contava casos, lembrava livros e autores, lia poemas e escritos dela. Tinha medo autêntico de trovoadas. Mais tarde, passei a freqüentar os jantares dominicais na casa de Helio Tornaghi, na Rua das Laranjeiras. Encantavam a verve do anfitrião, as tiradas de Jorge Alberto Romeiro, as observações de Chico, filho de Helio, em dia com todas as ocorrências da política, das artes, do quotidiano. Uma ou outra vez, aparecia o casal Evaristo de Moraes. A conversa tornava-se especialmente brilhante, nas cintilações do espírito de Evaristo, culto, profundo, mordaz, revoltado com a ditadura que o privou da cátedra, acadêmico e nonagenário hoje em dia, lúcido para lembrar-se e envaidecer-se dos seus feitos. 

     Pois num desses jantares planejamos escrever um livro sobre o pitoresco quotidiano no fórum. Hélio deu o título: “O cômico, o grotesco e o folclórico na vida forense”. Não levamos o projeto avante. Deixo aqui a lembrança dele para ver se alguém se interessa em pinçar o melhor de um acervo tão variado. Aos exemplos. 

     Ainda na minha infância, o meu pai defendeu um réu em situação complicada. Sustentou que ele cometera o homicídio em legítima defesa da honra. O promotor aparteou: “Legítima defesa da honra como, se ele atirou na vítima pelas costas?” Alguém, na assistência, gritou: “E honra tem costas?” Noutro júri, no interior de Santa Catarina, iam longe os trabalhos, quando um jurado levanta a mão, timidamente, e pede para ir ao banheiro. Calouro inexperiente, o juiz não permite: “Não pode não.” Promotoria e defesa correm em socorro do necessitado, para granjear-lhe a simpatia. O juiz, então, pergunta: “Quer dizer que ambos os senhores concordam em que o jurado vá ao banheiro?” A resposta vem enfática, de um lado e do outro: “Concordo!” Vira-se, então, o juiz para o jurado: “Neste caso, meu amigo, deixa eu ir primeiro porque estou apertado há muito mais tempo.” Ainda no júri, desta vez em Mangaratiba, se a memória não masca, o escrivão lia as peças do processo. Chegou ao depoimento: “que ouviu quando a vítima mandou o réu à p... que o pariu”. Gargalhadas. O juiz fala grosso. Ameaça evacuar o recinto. Restabelece a ordem. Volta-se para o escrivão: “Onde estávamos, seu fulano?” “Na p... que o pariu, doutor.” Ainda no gênero, o advogado estreante e muito nervoso, numa sustentação no tribunal: “Então, senhores desembargadores, a vítima provocou o réu, gritando: seu f. da p...,” em vez de “seu filho da p.” 

     Episódios grotescos, como aquele em que o juiz ensimesmado (no foro, costuma-se dizer atacado de “jurizite”) repreende com aspereza a testemunha humilde que o tratou de "senhor". Em voz alta: "o tratamento devido ao juiz é de 'excelência', compreende?" Encerrado o depoimento, o juiz mete-se numa longa conversa com o escrivão. Esquece-se de liberar a testemunha, que cria coragem e se dirige a ele: "Majestade, eu posso ir embora?" Igualmente grotesca a sentença de um juiz paulista, dando diminuta indenização à vítima que perdera o dedo mínimo, num atropelamento: "Não dou quantia maior porque o dedo mínimo não serve para nada e tende a desaparecer com a evolução da espécie." Fala-se também na reduzida soma concedida por ele a uma mulher que, numa discussão de rua, levou um soco na cara: "Não merece indenização maior. Se estivesse em casa, que é onde deve permanecer toda mulher, cozinhando para o marido, não teria se exposto à ocorrência." 

     O folclore dos advogados é interminável, inclusive porque, mais numerosos que qualquer outra categoria forense, são mais freqüentes os erros deles. Velhíssima a história do advogado, requerendo a abertura de um inventário: "o 'de cujus' (expressão latina que designa o morto, de cuja herança se trata) deixou viúva e três 'decujinhos'". Pior, aquele advogado que, para tocar a sensibilidade do júri, concluía a defesa: "o réu, senhores jurados, é um homem paupérrimo, mas honrado e trabalhador. Na última enchente, visitei o seu casebre. Boiavam, no chão alagado, as suas ferramentas de trabalho: boiava formão, boiava serrote, boiava martelo…" Não se conteve o promotor. Violou a regra de que não se aparteia o adversário na peroração, e interveio para dizer que aquilo era uma sandice. "Desde quando martelo, serrote e formão boiam?" Veio tranqüila a resposta: "quanta ignorância! Se navio, muito mais pesado, bóia…" Não custa lembrar o velho advogado, pela primeira vez na tribuna do Supremo Tribunal Federal. Ele enaltece longamente o tribunal. Pára: "não que eu esteja querendo puxar 'os sacos' de V.Exas”. Há ainda a história do advogado, citanto na série, numa petição, o maior jurista brasileiro: “Diz o ‘impagável’ Pontes de Miranda, de ‘saudável’ memória.” E para não deixar de fora o Ministério Público, existe a daquele promotor que deu parecer contrário ao pedido da mãe para vender imóvel da filha menor, porém já de triste fama: "MM. Juiz, sou contra. Conheço a mãe. Conheço a filha. Depois lhe conto."

      Eu não queria escrever sobre o assunto abordado até agora. Sentei-me, na verdade, dividido entre dizer algo sobre Copacabana, tal qual a conheci, no início da década dos 50, e o tema do título desta página. Copacabana eu a revejo agora, nesta fotografia da Avenida Atlântica em 1957, distribuída por "O Globo" com o convite, no verso, para visitar, no Centro Cultural Banco do Brasil, até 11 de setembro, das 10 às 21hs., de terça a domingo, a exposição comemorativa dos seus bem vividos 80 anos, celebrados agora por ele, por nós, leitores, pelo país, e pela imprensa do mundo todo. "Você está recebendo um pequeno pedaço da história", diz a legenda. Mostrei-a a alguns estagiários, sem dizer que a história é do jornal e de todos os contemporâneos da foto, inclusive minha. Desperta sensações a visão da avenida de uma pista só, de duas mãos, cheia de vagas para estacionar as exageradas banheiras americanas de então. 

     Quanto ao juiz e suas sentenças, ocorreu-me corrigir o erro da imprensa, quando diz coisas como "o juiz deu parecer", ou "segundo o parecer do juiz". Primeiro, juiz é qualquer integrante do Poder Judiciário que tem a função de julgar. O título de “desembargador” apenas designa juízes de tribunais de segunda instância, postos num segundo grau; um patamar acima daqueles magistrados perante os quais os processos normalmente se iniciam. Sustentam os integrantes dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal que só eles são desembargadores. O substantivo, entretanto, vem sendo utilizado por membros de outros tribunais do segundo grau. “Ministros” são os juízes dos tribunais superiores, como os do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Tratam-se de juiz os magistrados da primeira instância. Isso mostra que o substantivo designa o gênero e ainda uma das suas espécies. 

     Juízes, desembargadores, ministros, os magistrados não dão parecer, porém decidem. Não importa a espécie de seus pronunciamentos. Os despachos, as decisões interlocutórias, as sentenças, os acórdãos não constituem pareceres, atos que exprimem apenas uma opinião, porém decisões, atos da vontade do Estado, do qual os magistrados são agentes; atos que se impõem coativamente, obrigatoriamente, em maior ou menor extensão. “Sentença”, a mais importante das decisões do juiz do primeiro grau, vem de sentir. Ela encerra o sentimento do julgador acerca da matéria em causa. Trata-se, no entanto, de sentimento que, expressado, se converte em ato de autoridade. Nos tribunais do segundo grau e nos superiores, as decisões dos órgãos colegiados, compostos de ao menos três magistrados, alcançam-se pela maioria ou pela unanimidade dos pronunciamentos. Cada um dos julgadores exprime a sua decisão por meio de manifestação designada por “voto”. A soma dos votos vencedores compõe um julgamento chamado “acórdão”. Cognato de acordar, o substantivo acórdão procede de coração, tomada a palavra como símbolo do sentimento, mas, no caso, sentimento que, uma vez enunciado, ordena. Manda, obriga. Quando em inglês, se emprega o nome opinion para indicar um pronunciamento judicial, esse vocábulo toma o significado de decisão porque os juízes de todos os juízos e tribunais decidem. 

     O juiz sentenceia, como está, provocativamente, no título deste artigo, ou sentencia? Dirão os especialistas que se deve dizer sentencia. Assim, por exemplo, o "Aurélio", o "Houaiss", o clássico “Dicionário de Verbos e Regimes”, de Francisco Fernandes. Mestres da língua há, contudo, que preferem sentenceia, como nos casos, citados pelo "Laudelino Freire", de Rabelo da Silva ("sentenceio e executo"), ou de Castilho ("Eu nunca sentenceio sem provas"). Na "Réplica”, nº 24, Rui Barbosa escreve "Um analfabeto sentenceia" e, no nº 458, "como os que sentenceiam". Não se suponha estar diante de hipótese em que o verbo, terminado em ear, recebe um i eufônico nas formas rizotônicas, como o passear, o pentear (eu me penteio; eu passeio). Não se trata de verbo do sufixo ear (sentencear), porém da terminação iar. Não bastassem léxicos e gramáticas, Rui mostra isso, no mesmo item 458: "Aquele que sentenciar, neste assunto, como os que sentenceiam do que não sabem de raiz…". Parece, todavia, que sentenceio, sentenceia também se assentam em razões de eufonia, tão determinante na língua. Se se consente uma última observação, não se entende por que o autorizado Francisco Fernandes, para abonar a forma sentenciar, além de invocar Mário Barreto, só por si suficiente, recorre a Rui, porém, mediante uma transcrição infiel dos itens 24 a 458 da “Réplica”. Fernandes faz a transcrição de Rui, como se ele, naqueles itens, houvesse escrito as formas sentenciam e sentencia, exatamente onde ele escreveu sentenceiam e sentenceia. Indagarão agora: "E daí? O que se me dá se é preferível dizer ‘o juiz sentenceia', em vez de 'o juiz sentencia'?". De que valem estas filigranas gramaticais? Só resta calar a semelhantes perguntas.

11.02.2006

Fonte:    www.nominimo.com.br - 09.08.2005

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