Venda de ascendente a descendente

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Zeno Veloso 
Jurista


     O sujeito me pediu uma audiência, entrou no escritório bastante nervoso e foi logo direto ao assunto: “Doutor, com dezenas de imobiliárias, com centenas de casas e apartamentos para vender nesta cidade, meu irmão resolveu comprar exatamente uma mansão de nosso pai. Estou convicto de que não se trata de venda, coisa nenhuma, mas de uma doação. E não aceito esse favorecimento a meu irmão, que é o “queridinho” do velho, apesar de jamais ter querido estudar e trabalhar. O que posso fazer para que o negócio não seja realizado? Nem tanto por mim, mas por meus filhos, que, no final das contas, vão ficar prejudicados”.

     A questão se relaciona com a venda de ascendentes a descendentes, que é sempre um tema difícil e complicado. Realmente, num aspecto tem razão o consulente: com tantos imóveis postos à venda, o filho vai querer comprar exatamente a casa do pai?

    O Código Civil, artigo 496, cuja fonte é o artigo 1.132 do Código velho, estatui: “É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”. O parágrafo único do dispositivo prevê: “Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória”. Note-se: separação obrigatória, cogente, imposta pela lei. Não se trata de separação de bens convencional, decorrente de pacto antenupcial, pois, neste caso, o consentimento do cônjuge é essencial.

    Essa proibição é antiquíssima. Apareceu nas Ordenações Manuelinas, de 1521, sendo repetida nas Ordenações Filipinas, de 1603 (Livro 4, título XII). Constou no artigo 1.565 do Código Civil português, de 1867, foi mantida no artigo 877 do atual Código Civil lusitano, de 1966. Da legislação portuguesa (e luso-brasileira), a vedação da venda de ascendentes a descendentes passou para nosso Código Civil de 1916 e para o atual. Só nas legislações portuguesa e brasileira o caso é previsto.

     Já nas Ordenações Manuelinas (Livro 4, título LXXXII) se explicava que a norma era estabelecida “por evitarmos muitos enganos e demandas que se causam e podem causar das vendas que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros descendentes”. Os autores, sem discrepância, apontam que a regra contida no artigo 496 de nosso Código tem o objetivo de evitar uma simulação, ou seja, a doação de bens (móveis ou imóveis) aos filhos, sob forma de venda, para que os beneficiados não tivessem que trazer o bem à colação, com a morte dos pais, para efeito de igualar as legítimas dos herdeiros. O disfarce ou a fraude é minimizado com a exigência da concordância expressa dos demais descendentes e do cônjuge do vendedor. Essa anuência é indispensável para que a venda se realize.

    Inclui-se na proibição, além da venda, propriamente dita, a promessa de compra e venda, a dação em pagamento e a troca ou permuta de valores desiguais. E o negócio é inválido, também, se for utilizada interposta pessoa: o pai vende a um estranho que, depois, traspassa para o filho (fraude).

     Se algum descendente ou o cônjuge não quiser dar o consentimento, não se pode alegar que a recusa é imotivada ou injustificável, para obter o suprimento judicial. A meu ver, isto teria de ser expressamente previsto na lei, e não foi, ao contrário do artigo 877, 1, do Código Civil português, que admite o suprimento pelo juiz do consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado. Mas há opinião, na doutrina, de que o suprimento judicial pode ser requerido se a recusa exprime mero egoísmo e emulação (Sílvio Rodrigues, Sílvio Venosa).

     Discutiu-se durante décadas, em nosso país, se a venda de ascendentes a descendentes, sem o consentimento dos demais descendentes, seria nula ou anulável, havendo muitas decisões, inclusive do STF, num e noutro sentido. O novo Código Civil resolveu o problema, afirmando que o negócio é anulável. O descendente ou o cônjuge que não consentiu pode propor a anulação da venda.

    Expliquei tudo isso ao consulente, que voltou a sorrir e saiu satisfeito, até porque não cobrei conta alguma. E também porque não lhe disse - nem tinha sido perguntado - que o pai tem uma forma de beneficiar o filho mais amado: basta que doe o imóvel a esse descendente, afirmando na escritura que é retirado de sua metade disponível (se couber nessa metade), dispensando o donatário de trazer o bem à colação (artigos 2.005 e 2.006 do Código Civil). Como se vê, tirando a morte e paixão que não é correspondida, há jeito para quase tudo.

05..03..2005 

Fonte: Jornal "O Liberal" - edição de 27.09.2003 

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